Quatro anos completos, casa do meu avô, papai noel contratado e atrasado. Tensão na porta, ele pegou no colo a primeira criança que viu : eu.  Um cheiro doloroso de cachaça. No outro dia, quis avisar a minha mãe. Com carinho. Lembrei da fórmula já ouvida. Olha, não é que ele seja má pessoa, é que ele bebe. Ela largou a colher de pau. Olha, preciso te contar uma coisa, aquele homem não era papai noel. Não ? É um homem qualquer, ele põe aquela roupa é para entregar os presentes. E porque é que ele entrega os presentes ? Porque é Natal, o dia de comemorar o aniversário de Jesus. Tinha ouvido falar mas não conhecia muito bem. E quem é o jesus? Ah, jesus é o filho de deus.  E quem é deus? Deus é um ser… uma coisa… uma força… que está em todo o universo. E o que é universo ? Bem- ela avançou na fruteira – a gente vive no planeta terra, aqui fica a lua que a gente vê, aqui o sol que a gente vê também, mas tem um monte de planetas que a gente não vê e estão no espaço também, assim, soltos no espaço sideral, no universo, no infinito. Entendi mais ou menos e fui tomar um ar na porta da cozinha. Olhei para o céu, estava azul, nuvem nenhuma. Tentei aprofundar. Então fica muito longe, né ? O quê ? O universo. O universo é tudo, ela respondeu. Senti qualquer coisa. E onde é que acaba, eu perguntei, sem tirar o olho de lá. Não acaba nunca, é infinito – vá lavar as mãos. Tentei imaginar. Aí, chorei.
por Ana Souto

Na Bienal

11/09/2012

Imagem

– hummm…
– humhumm…
– você reparou que…
– humhumm…
– hum
– …
– …
– nos conhecemos?
– hum

– muito blasé.

– o blasé é todo meu

  em casa
– Respira. Respira. Acho que peguei tudo – tropeça na mala. Caralho! Agora não falta nada. Respira, amor. Respira!
– pegou as lembrancinhas?
– peguei
– o cartão do convênio?
– peguei, amor. Respira!
– ligou pro taxi?
– liguei, paixão. Respira cachorrinho que já tá chegando
– acho que faltou algo importante
– respira…
– colocou o 9 na frente?
– respira, porra!

no taxi
– minha nossa senhora! Esquecemos de registrar o nome
– como assim, paixão? Só registra depois que nasce. Respira!
– é, dona. Só registra depois que nasce
– tá vendo, amor? Até o taxista sabe. Respiração, amorzinho
– mas a gente ainda nem decidiu o nome
– uai. Não ia ser Ulysses, como o seu avô?
– Ulysses é um nome bonito, dona. Nunca conheci um
– tá vendo, amor? Até o taxista gosta. Respira cachorrinho

na sala de parto
– minha nossa senhora! Você viu se já existe um @ulysses?
– oi, amor?
– e @uly_oliveira? Viu se já tem?
– não vi, paixão
– dá um google
– é, já tem
– vamos mudar. O que tem disponível?
– @eloá
– depois a gente muda o sexo
– e as lembrancinhas?
– …
– tudo bem, amor. Respira.

@344333

02/11/2011

Eu adoro filosofia de botequim.
Tenho uns amigos que insistem que o esporte não desapareceu, só mudou de endereço e estilo. Dizem que foi para o tuíter, boteco em que ninguém precisa rachar a conta ou ficar exposto ao sol. Isso é legal, mas, mesmo assim, eu adoro filosofia de botequim porque na saideira tudo muda.

Não convém casar sem comer um quilo de sal, não há discussão antes dos 140 goles e, limitada a 140 caracteres, a tal filosofia perdeu completamente a graça. Sou antiquada, isso não se discute, e discutir com argumentos, afiando a língua e molhando o bico, tentando evitar a ambiguidade para chegar mais próximo do consenso – ou do dissenso – cheio de razões, está fora de moda. A moda é ser curto e fino – ou raso e grosso – dependendo do gosto do freguês. Sendo assim, peço a conta e desculpas ao gerente. Não tem wikipedia que me convença de que é possível ser mediocremente analítico, reproduzindo fragmentos do conhecimento universal fora de contexto, ou que se pode construir qualquer coisa aproveitável para o pensamento sem usar o desenvolvimento do raciocínio e do debate. A dura realidade é que ninguém mais está a fim daquelas intermináveis conversas de botequim onde, se é verdade que nunca se encontrava a solução para todos os problemas da humanidade, ao menos nos dava a garantia de sairmos fortalecidos na nossa capacidade de nos percebermos mais, ou menos, bestas. Geralmente mais bestas. Quase sempre mais fortes.

Nada disso. Para estar up-to-date-hoje-em-dia, o cara tem de se esmerar na solidão de suas próprias gugadas, debelar a crônica ignorância de todo comum mortal e sacar uma frasezinha de efeito, um trocadalho que seja, que o ponha em condições de desfilar como sujeito pensante na passarela da modernidade eletrônica. A conta vem com o contador que mensura seu sucesso.

Saudade do tempo dos 140 goles sem “não me toques”.

Na minha opinião, perdemos todos. Mas agora, que já me declarei uma dinossaura desavergonhada, ninguém vai se espantar com o fato de que, isolada no meu anacronismozinho, eu tenha partido para tentar encontrar algum substituto para o velho esporte recreativo que tanto amava: a filosofia de botequim. Nem que fosse como onanista. Foi mais ou menos por essas causas, e deste jeito, que me viciei em pesquisas virtuais de opinião. Não dou a mínima para os resultados: o que me delicia é ver a formulação das perguntas, ou a falta de imaginação de quem as faz, e o fato de ninguém perceber que este exercício na base da múltipla escolha – que quase nunca chega a três opções – é uma coisa dos infernos. Se não for a sacralização da preguiça mental, deve ser mesmo uma invenção maquiavélica. Lá está estampada na notícia do dia. Um fato cabeludo, cheio de implicações no passado, no presente ou no futuro. Cheio de personagens, emoções e mistérios. No canto direito – quase sempre é no canto direito – lá, descuidado, está o túmulo do pensamento. Aqui jaz a sua opinião:
a) vai dar certo
b) vai dar errado
c) não vai dar em lugar nenhum

d) foda-se a Eslovênia

Não se deixe influenciar.

Se quiser, feche a porta da direita com muito cuidado, pule essa parte e siga a maioria sem matutar muito ou pensar nada – às vezes é melhor pensar nada do que ficar nessa masturbação mental. Eu mesma, se lesse isso, diria que esta merda de frase-feita é mera punheta.

Se quiser discutir isso, marcamos na padoca da esquina e penduramos na conta do senso comum, ou retuítamos ao menos uma vez @344333

Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa uma boa mídia que não seja requentada.

Fim de papo.

Por Ana Souto

Nibiru Down Down

26/10/2011

Sabe aquela história toda da teoria do Big Bang? Esqueça.

A culpa de estarmos aqui é de Nibiru.

Nibiru, um planeta, planetinha camarada que tem uma coreografia toda própria há uns bons milhões de anos. Quem descobriu foi o  Zecharia Sitchin quando leu uns documentos deixados por uns extraterrestres. É isso mesmo. As civilizações antigas, segundo esse tal de Zacarias, souberam de ETs (fontes seguras) que a terra começou assim:

foi por telefone:

“Tinha um planeta entre Marte e Jupiter, chamado Tiamat. Numa dança muito louca, Nibiru veio lá de longe e acertou Tiamat em cheio, partindo o pobrezinho em dois”.

Tiamat já era. Por isso os meninos da Caverna do Dragão nunca mais vão voltar pra casa.

Metade do Tiamat ficou destruída, virou um monte de asteróide e cometa – o que a gente chama hoje de Cinturão de Asteróides – e que Kate Middlenton usou na sua festa de casamento, no palácio.

 A outra metade chamamos popularmente de Terra mesmo.

Pois é, se não fosse Nibiru, não estaríamos aqui. E mais estranho ainda é que se não fosse Nibiru, continuaríamos aqui numa boa, como estamos vivendo hoje.

Isso porque, a cada 3,6 mil anos, Nibiru volta a bailar pelas bandas de cá. E vai acontecer de novo no ano que vem.

 Bater na Terra, ele não vai, mas há quem duvide. Só que mesmo passando apenas perto, ele vai confundir bem as coisas por aqui. Por exemplo: sua bússola vai começar a apontar para o sul, terremotos, dilúvios etc.

Dizem que em uma das passagens de Nibiru, um cara chamado Noé teve de construir uma arca. Na outra, afundou uma cidade inteira chamada Atlântida – não é lá que vive a Ariel?. Quando Nibiru passou pelo B-612, a rosa morreu.

Como prevenção nunca é demais, o nosso conselho é construir um abrigo em algum lugar alto, como o planalto central, e ficar por lá quieitnho esperando.

Nibiru vai mudar tudo aqui.

O barato é o seguinte: é tudo culpa da Marrom.

Explico.

O sistema solar gira em torno de Alcione, estrela central da Constelação de Plêiades, e leva uns 26 mil anos pra completar uma volta inteira na cintura dela – não que seja gorda, é que é longe. E se a gente for mais longe e dividir esse tempo todo por 12, temos a duração de cada era astrológica. Mais ou menos uns 2.160 anos – não que seja velha, mas sim da velha guarda e, portanto, o sol gira em torno dela.

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Alcione, como toda estrela, é vaidosa e tem um Anel lindo, todo em fótons – a mais pititica partícula de energia eletromagnética, arrimo de todas as transformações de moléculas e átomos do nosso planetinha –, que ainda lhe serve como Cinturão. Um arraso. Acontece que a cada 10 mil anos, a gente se aproxima da bijou da Marrom e fica uns 2 mil anos por lá expostos à essa radiação.

Entrar nessa roda, claro, tem consequências, mas dizem que o mundo não vai acabar e o samba não vai morrer, há de evoluir – como da última vez que isso ocorreu há 12 mil anos, na Era de Leão, com o fim do paleolítico e a invenção do pagode. Ali, o homem começou a reparar na pedra e dominar o fogo. Coisas de Alcione.

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Agora começou tudo de novo. O sistema solar voltou a sambar miudinho em sua órbita desde 1972, a Terra está só no sapatinho desde 1987 e em 2012 vamos, de novo, sacar a bijou da Marrom de perto e ficar por ali pelos próximos 2 mil anos. Logo quando inicia a Era de Aquario, essa estranha loucura.

Vamos descobrir a quarta dimensão, liberar as energias bloqueadas, transar massagem, acupuntura, homeopatia, florais, meditação, yoga, tai-chi, e ouras cositas pra abrir os canais de comunicação com outros planos universais, incluindo o pagofunk.

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O fim está próspero! E é tudo culpa da Marrom.

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Quadrante superior esquerdo, atrás do fortão de chapéu FIM

 via @jaobrunelli

o pior é que…

20/08/2011

…uma hora dessas, o plantonista tá orgulhoso do número de cliques.

 

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O ciúme é um travesti de quinta categoria que senta do seu lado no ponto de ônibus e diz: “Mona, você viu o jeito que o teu bofe olhou pra caixa do supermercado no sábado? Aquilo não é jeito de olhar caixa de supermercado, gata. Que intimidade era aquela? Você já foi atrás disso?”

Você tenta não ouvir, mas quando vê está batendo o maior papo com o travesti. Ele te dá dicas de sapatos e bolsas, vocês trocam confidências sobre batons. E o melhor: falam mal do batom que a caixa estava usando – um rosinha pálido horroroso.

Aí pronto: você chega em casa enlouquecida, fala as maiores barbaridades, ele demora um tempo pra entender do que você está falando e você continua lá, verborrágica. O ciúme, esse travesti de quinta. É tudo culpa dele, que estava sem serviço na zona e veio encher sua cabeça.

No dia seguinte, vocês vão ao shopping. O ciúme cola do seu lado todo trabalhado no pink. “Que abraço é esse, gata? Ninguém abraça amiga de colégio desse jeito não.” Você tenta argumentar que eles são amigos há 20 anos, que você conhece até os pais dela, mas não tem jeito. “E os pais dela sabem que eles estão transando ou isso é segredo de vocês três? Fica esperta, bi”.

E pronto, lá está você vasculhando os torpedos, procurando a conta de celular do ano passado na gaveta e digitando os números no google sem nunca achar nada. O ciúme, esse travesti de quinta. Pernas mal raspadas, perfume enjoado, maquiagem barata. Ali do seu lado. Esperando você fraquejar para te foder. Fica esperta, bi.

Ela tinha cabelos curtos e loiros. Às vezes aparecia ruiva, mas logo desbotava e ela continuava com um chanelzinho liso e loiro. Acho que por muitos meses, ela foi a coisa mais bonita que eu via todos os dias. Chegava ao trabalho, deixava a bolsa, ajeitava a franja com as duas mãos atrás da orelha antes de se sentar. E trabalhava. Eu olhava, à distância de três baias, pelos vãos dos monitores pretos. A coisa mais linda. Ela ria baixinho quando alguém passava e dizia um galanteio e acho que todo mundo que usava gravata no escritório dizia um galanteio todos os dias. Eu só olhava. Em retribuição, ela, claro, me ignorava.
Paguei café na máquina, que ela agradeceu com um meio sorriso. Um dia, deixei que ela entrasse no elevador antes de mim e ela quase se esqueceu de segurar a porta para mim. Entrei apressado e calado. Treze andares, nem um suspiro. Todos os dias, a coisa mais linda. Ajeitava o cabelo com as duas mãos e sentava para trabalhar. Um dia riu de uma piada que eu fiz. Outro dia, cortou um pedaço do bolo dos aniversariantes do mês e me ofereceu. Eu sorri de volta e chamei pro café. Ela recusou.
A coisa mais linda do dia, todos os dias.
Um dia, no ponto de ônibus, ela chegou. Puxou papo, iluminou o fim de tarde com o sorriso mais bonito, disse que gostava da luz do fim da tarde no outono. Eu tirei um dos fones para ouvir melhor, enquanto meu coração batucava querendo sair do meu peito e dançar na rua.
O fone de ouvindo chiava pendurado na gola da minha camisa até que ela perguntou: o que você está ouvindo?
– Maurício Pereira – eu gaguejei meio sem rumo e perguntei – quer ouvir?
Ela se aproximou de mim, a coisa mais linda do dia, ali, no meio do meu dia,perto do meu peito tapando um dos ouvidinhos lindos para ouvir melhor. O perfume entrando no meu nariz, eu controlando a respiração, preocupado se ela estava ouvindo o baticum do meu coração, percebendo a tremedeira nas mãos e todas as alterações no meu corpo.
A música acabou, ela devolveu fone com um sorriso muito lindo e disse:
– Não gostei.
– Quê?
– Eu não gostei desse Maurício Pereira.
– Quer saber? Por que você não vai tomar no seu cu?

(inspirado em fatos reais)